A ordem ou o silêncio da maioria

O risco de um golpe como o de 1964 é remoto, mas ainda devemos ultrapassar algumas barreiras desse período para atingir uma sociedade mais igualitária .

Quarenta e nove anos depois, o Golpe de Estado de 1964 ainda nos interpela fortemente. A interrupção de uma das mais ricas experiências democráticas brasileiras se faz presente não apenas como elemento fundamental para compreender a formação do Brasil contemporâneo, mas também revela sua atualidade pela clara permanência, mesmo que em chave diversa, de parte das questões e divergências que a motivaram.
Não que o país permaneça o mesmo, ou que outro 1964 desponte no horizonte. O Brasil de hoje é fundamentalmente diverso do da República de 1946, após fim do Estado Novo de Vargas. Alguns limites que restringiam a participação política de grande parte da população, com a exclusão de analfabetos e comunistas, não encontram mais lugar. A atual ordem constitucional, inaugurada em 1988, é sem dúvida mais ampla e inclusiva que a anterior, sem as fortes limitações aos direitos dos trabalhadores, tão bem expostas então pela Lei de Segurança Nacional aprovada em 1953. Um presidente da República foi constitucionalmente impedido e assistimos à eleição de um operário, a representar um partido de esquerda, sem maiores riscos de qualquer cisão institucional. O clima de iminente ruptura e constante crise, tão característico da conjuntura dos anos 1950 e 1960, não se faz presente do mesmo modo.
Ao lado das evidentes diferenças, alguns pontos, entre importantes permanências e feridas ainda não curadas pelo tempo, merecem destaque. Modificadas pela inevitável ação do tempo, causas do fracasso da democracia de 1946 perduram, em cenário sob muitos aspectos preocupante. Se não há qualquer motivo aparente para temer o mesmo desfecho, ausentes as evidências de qualquer esforço golpista politicamente relevante, tais crenças e práticas políticas contribuem, por outro lado, para grande parte das mazelas e dificuldades que a sociedade brasileira ainda enfrenta em seu difícil caminho rumo a uma ordem mais igualitária.
Como todo evento histórico, o golpe de 1964 resulta da interação de uma complexa rede de causas, a contribuírem com intensidades diversas para sua eclosão. O papel do intérprete do período é perceber sua interação, sem recair no olhar simplista que elege uma vertente como razão única e suficiente para o evento. A insatisfação da burguesia com o ordenamento político econômico de então, cada vez mais favorável às pressões dos trabalhadores, convive com os problemas do sistema político e a importante ação externa dos Estados Unidos, em cenário de difícil e intrincada reconstrução. Ao lado dessas causas, e ao mesmo tempo a atravessar várias delas, tem papel central no desfecho da conjuntura o temor e a reação, então despertados, pela crescente presença das massas no cenário político. Inegáveis as restrições legais então presentes, não há duvida de que o período testemunha uma presença e força inédita dos movimentos populares, seja através dos sindicatos urbanos ou das ligas camponesas. As massas se faziam cada vez mais presentes e influentes, tanto nas ruas como nos gabinetes, com força para determinarem políticas públicas, influírem partidos e pautarem o debate público, nem que fosse através da reação dos seus críticos. Tal cenário não transcorreu sem consequências, como a nefasta herança do golpe e da ditadura bem demonstram.
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